Obras

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sábado, 28 de janeiro de 2017


Quando o mistério não tem mistério
carlosalbertoreis51@gmail.com
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Quando o não tem mistério
Observação importante: Uma amiga comentou que o blog contém textos longos demais para serem lidos no celular. Concordo, porém, por orientação médica, não se deve forçar a visão lendo textos longos no celular; as matérias pedem reflexão porque são temas complexos que não permitem reducionismo. Por isso, sugiro dispensar alguns minutos lendo-as no computador com atenção dedicada para a adequada absorção do conteúdo.
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Retomando o debate iniciado há algumas semanas, o lance da vez é a eterna dicotomia entre ciência e crença. Vejamos como caminha essa dialógica. O que os separa é a dúvida, a ignorância, a inocência, o desconhecido, o imaginário, que alimentam e estimulam o mistério. Enquanto a ciência sai à cata de explicações e não descansa até encontrá-las - e nem sempre encontra -, a crença, não tendo estas respostas, deixa tudo nas mãos do imponderável, do 'transcendente', e o mistério permanece 'misterioso'. Por que destaquei imaginário? Por óbvio. Para Manguel, "A nossa geografia imaginária é infinitamente mais vasta do que a do mundo material. Esta observação, por muito banal que seja, permite‑nos detectar a generosidade imensa de uma função humana vital: a de dar vida ao que não pode reclamar presença no mundo do volume e do peso".

O antídoto para o germe da dúvida é o saber. O instrumental que viabilize a dissolução do problema deve conter racionalidade, questionamento responsável, espírito crítico, conhecimento transdisciplinar (olha ele aí de novo) compartilhado, observação, pesquisa e experimentação sistemáticas, temporalidade. Com isso, temos, de um lado, paradigmas esperando serem substituídos (ou não), de outro, paradogmas que não querem ser contestados. Para que o antídoto surta efeito, ele deve ser composto de princípios ativos associados: compromisso com a verdade, conhecimento, olhar atento e consciente, percepção das estruturas, ócio criativo, indagações pertinentes, contínuas e dessemelhantes, autoconhecimento, noção do erro, dialética e coragem. Coragem? Sim, coragem, para enfrentar o contraditório de suas crenças, a remoção do antigo e a instauração do novo.

O problema é que a atração pelo mistério faz com que o indivíduo obstrua seu senso crítico, ignore os avanços científicos e, assim, persista em crenças tolas sobre criaturas fantásticas, terras fictícias, eventos mágicos. Para Umberto Eco, tudo isto são cenários inventados que, agora ou no passado, criaram quimeras, utopias e ilusões porque muita gente acreditou que realmente existissem ou tivessem existido em alguma parte, ou ainda, lugares mitológicos em torno dos quais surgiram lendas que afirmaram, durante séculos, sua existência real. A Atlântida e o Graal são os melhores e mais fabulosos exemplos da inventividade humana. Inegavelmente, somos insaciáveis caçadores e adoradores de mistérios.

Mas há mistérios e "mistérios". Enquanto uns vão sendo paulatinamente desvendados, outros permanecem insondáveis, alguns foram ou serão inventados e novos surgirão. O mistério é belo, nos move e nos comove, nos encanta, impulsiona o intelecto. Se a vida não tivesse mistérios ela seria monótona, vazia, e não teríamos chegado até aqui. O desconhecido nos faz sentir vivos e pensantes, e nos leva a dimensões imaginárias jamais sonhadas.

Há um aspecto interessante para reflexão: meu interlocutor é formado em engenharia e atua no jornalismo, ou seja, tem a mente bastante analítica, racional, seletiva e pragmática. Para ele, as fontes devem ser confiáveis e os cálculos precisos para que os resultados sejam sólidos. Não obstante, ele revela seu fascínio pelo mistério, pelo impenetrável que a vida oferece, pelas coisas que a ciência ainda não responde, justificando seu interesse pelo fenômeno Óvni. Nenhum problema quanto a essa aparente incompatibilidade de visão de mundo, porque faz parte da complexidade humana. A razão do debate está exatamente em buscar outras vias do conhecimento, colocando em 'xeque' tudo o que sabe com aquilo que não sabe. Perfeito. Veio ao lugar certo.

Um amigo muito querido já falecido era matemático, engenheiro, físico e astrônomo. Na outra metade do dia, cabalista, astrólogo, budista e sei lá mais o quê. Um sujeito brilhante, que defendia suas ideias com argumentos difíceis - mas não impossíveis - de serem rebatidos. Já outro amigo de convívio diário é físico e um dos melhores profissionais em computação de ponta. Conhece os caminhos da lógica como poucos e, em paralelo, adepto da doutrina espírita. Último exemplo, amigo historiador, ateu, leitor voraz, culto e extremamente racional, que em seu cotidiano cumpre regularmente as liturgias de sua Igreja Melquita.

Alguma contradição ou incoerência? Nenhuma. Indícios de conflito existencial? Absolutamente não. Choque de conduta entre as crenças e os saberes? Nada consta. E por que não? Porque, além das características em comum, há neles uma virtude que talvez seja a mais importante, a de serem excelentes ouvintes, jamais encerrados em verdades intocáveis e imutáveis. Para encarar pessoas desse porte, precisa-se de capital do mesmo calibre. Essa turma não delira, não repete mantras sebosos, não faz ciência de botequim nem tropeça no discurso.

Para o filósofo Gustave Thibon, "O mistério não é uma muralha na qual a inteligência esbarra, mas um oceano onde ela mergulha". Eu diria também que o mistério não é uma montanha inexpugnável, pois sempre haverá um caminho que a contorne levando ao cume. A origem do mistério não está nele, mas em nossa ignorância sobre ele, até o momento em que possamos galgar níveis maiores de compreensão, quando o véu é descerrado. Até um véu de pedra revela belezas inesperadas. O 'mistério' que o leitor crê haver no fenômeno Óvni - um dos pontos nevrálgicos do debate (supondo que hajam outros) - não existe. O mistério somos nós. 


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Umberto Eco, História de Terras e Lugares Lendários. Record, 2013.
Alberto Manguel; Gianni Guadalupi. Dicionário de Lugares Imaginários. Tinta da China, Lisboa, 2013.

Um comentário:

  1. "A origem do mistério não está nele, mas em nossa ignorância sobre ele, até o momento em que possamos galgar níveis maiores de compreensão, quando o véu é descerrado".

    Bravo, senhor Reis! Abraço.

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