Obras

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sábado, 4 de fevereiro de 2017

RRocinante de Troia roia_____
carlosalbertoreis51@gmail.com
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Observação importante: Uma amiga comentou que o blog contém textos longos demais para serem lidos no celular. Concordo, porém, por orientação médicanão se deve forçar a visão lendo textos longos no celular; as matérias pedem reflexão e não simples leitura, porque são temas complexos e não permitem reducionismo. Por isso, sugiro dispensar alguns minutos lendo-as no computador com atenção dedicada para absorção adequada do conteúdo.
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Quando Cervantes escreveu Don Quijote (1605-1615), ele jamais poderia imaginar que sua obra se tornaria um marco na literatura universal, objeto de longos estudos sociais, dissecada à exaustão pela Academia, traduzida para vários países. O elegante e "louco" fidalgo arrebatou uma legião de admiradores e sua aventura é representada em todo o mundo. Um clássico, primoroso e inovador, uma 'imposição' à autorreflexão sobre ética, justiça, prudência, virtude, inteligência, fantasia e realidade. Mesmo que você nunca a tenha lido, sabe do que e de quem se trata, e sabe também o alcance das inúmeras interpretações que a obra engendrou. E a ufologia permite trazer mais uma. Primeira pausa.


Por força de tanto imaginar e tantas leituras insensatas,, me afastei da realidade ao ponto de não mais saber distinguir em que dimensão eu vivo.

Narrada na Ilíada de Homero, a batalha entre gregos e troianos - a Guerra de Troia - teria ocorrido por volta de 1300 a.C. segundo os estudos arqueológicos. Porém, o episódio do cavalo seria lenda, uma narrativa épica de viés mitológico, o popular "presente de grego". Essa história você também conhece, mas deve estar se perguntando o que o aclamado romance do século 17 tem com o conflito bélico da antiguidade? O que há em comum entre eles e o que diabos a ufologia está fazendo aqui? Segunda pausa.

O medo que tens faz com que nem vejas nem ouças direito, porque um dos efeitos do medo é turvar os sentidos e fazer com que as coisas não pareçam o que são.

Sua inteligência, leitor, chegou antes que minhas palavras, tenho certeza. O imaginário quixotesco faz parte da sua vida tanto quanto a epopeia grega. O que proponho é unir um e outro através do elemento comum - o cavalo de Troia e Rocinante, a montaria do nobre sonhador - para traçar o perfil daqueles que nutrem fantasias e delírios como rota de vida. Ou de fuga. Séculos depois, Homero e Cervantes se juntam para contar essa nova história. Mas, ao contrário que que fiz em Naus, não vou falar do humano, essa criatura pendular e aporética. Também não vou falar do auto-intitulado ufólogo, que sobre esse já esgotei meu vocabulário, nem da ficção científica como roupagem tecno-mística do discurso ufológico.

- Valha-me Deus! Não lhe disse eu a Vossa Mercê que reparasse no que fazia, que não eram senão moinhos de vento, e que só o podia desconhecer quem dentro da cabeça tivesse outros?

O heroico cavaleiro de triste figura deu de ombros e seguiu impávido em sua obstinada luta contra moinhos de vento imaginando gigantes medonhos, rebanhos de ovelhas como exércitos inimigos, monges e mercadores como indignos raptores de princesas. Cervantes dera vida a um personagem para nos ajudar a desvendar o mistério que somos todos, a encontrar os verdadeiros valores da vida humana e, principalmente, através de seu nada coadjuvante fiel escudeiro Sancho Pança, a olhar de frente para a realidade do mundo, deixando as fantasias da imaginação serem apenas o que são, poesias da alma.



A ufologia é essa aventura romanesca, para não dizer quimérica. Esforça-se para parecer uma proto ou nova ciência, quando não é nada disso - nem proto nem nova muito menos ciência. É o próprio cavalo de Troia, oco, falso, ilusório, e Rocinante, um pangaré capenga, desconjuntado, desnutrido, mal conduzido por Sísifos modernos de triste figura rumo a lugar nenhum. Lugar nenhum - utopia, fruto de uma "cegueira hipnagógica", que causa a supressão dos dados de realidade, no consequente desgarramento desta e na adesão a um realismo fantástico tal como as errâncias desventurosas do nosso imaginoso, valente e honrado cavaleiro de La Mancha.

Don Quijote é "parte da memória da humanidade", disse-o Jorge Luis Borges, mas toda história precisa de um fim, e ele sai de cena com um melancólico suspiro de amor pela vida, pela lealdade e pela verdade. Sua morte é a morte das utopias. Só sentimos isso quatro séculos depois. Espero que você tenha entendido o que é Sancho Pança. Enfim, nas palavras de Calvino, "Um clássico é uma obra que nunca terminou de dizer tudo aquilo que tem para dizer."

Acabo de receber o benefício da razão concedido pelos céus. Perdoa-me, meu amigo, tê-lo levado a passar por louco como eu, fazendo-o cair no erro em que eu caí: acreditar que houve cavaleiros andantes no mundo.

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