Obras

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sábado, 18 de fevereiro de 2017

Só o outro pode dizer quem sou,
mas eu desconheço quem é ele
carlosalbertoreis51@gmail.com



Continuando o assunto da semana passada, caso você não tenha lido recomendo que o faça, ou vai pegar o trem em movimento sem saber para onde está indo. Recapitulando, alteridade é assunto de gente grande e cabeçuda. "Cabeçuda", na minha língua, é quem tem grande capacidade de reflexão e inteligência para chegar à estratosfera do pensamento. Discutir alteridade é para poucos.


O título acima resume o problema. Como ser o que não sou se ainda nem sei quem sou? Como ser o que nunca fui, se nunca fui o que penso ser? Entre mim e o outro há um silêncio e entre todos os outros, todos os silêncios. Esforçamo-nos para compreender essa linguagem silente, mas estamos na pré-história do conhecimento de nós como primatas engravatados. Nada sabemos sobre nós, conquanto alguns creem saber tudo sobre os outros, e você sabe de que "outros" estou falando.

Para enfrentar essa longa caminhada em busca de uma identidade, alguns balizadores são fundamentais: ética, formação humanista, autocrítica, educação, responsabilidade. Conforme esclarece Abbagnano, alteridade é "Ser outro, pôr-se ou constituir-se como outro". Quem sabe a máxima socrática não poderia ser reescrita para Conhece o outro para conhecer a ti mesmo. Que identidade é essa, qual é nosso Rosto? Temos um?


O outro vai além de simplesmente refletir a nossa imagem. Ele é nosso algoz porque reflete o que julgamos ver ou imaginamos ser. Rimbaud escreveu: "Eu é um outro", um efeito boomerang: A ideia nuclear da alteridade é nos colocar como "outro" e trazê-lo de volta a nós. Somos essencialmente seres relacionais dentro de um solipsismo multitudinário. Nota de rodapé: o selfie é o exemplo bem atual de busca da identidade, quando "saio" de mim para mostrar-me ao(s) outro(s) e a mim mesmo, imagem que supostamente é diferente daquela que vejo no espelho. 

É na relação com o mundo, com a natureza, as coisas e as pessoas que nos fazemos, daí surgindo nosso Eu e nossa identificação com o mundo, a natureza, as coisas e as pessoas. E é dessa relação tensional, inclusive, que desenvolvemos as artes, as religiões, a imaginação e as crenças como formas de se integrar, interagir, entender e se fazer entender. Lacan elaborou suas teorias como base do desenvolvimento da função do Eu no denso trabalho "Estádio do Espelho". Em certo momento, após a fase inicial de contato com esse outro corpo, ainda não reconhecido como seu, a criança adquire a sensação de totalidade e unidade. Antes disso, ela possuía uma sensação de fragmentação, de despedaçamento, de corpo desgovernadoO espelho dá a ilusão de unidade. Os itálicos encontram sua correspondência a seguir.

Ao admitirmos nossa infância e solidão cósmicas - e elas são reais, é possível traçar paralelos com o estudo lacaniano: 
a presença do alienígena dá ao homem a mesma ilusória sensação de totalidade e unidade, dissipa sua desorientação e lhe fornece um registro identitário. Outro, em latim, é alienusAlienígena o "de fora" ou qualquer outro fora da dimensão humana - deuses, anjos, demônios, espíritos. Bizarros, anômalos, burlescos, habitantes do reino da fantasia, do imaginário, dos mitos e dos delírios, por isso mesmo tão cativantes. Como o homem é marcado pela incompletude, insuficiência, fragmentação e descaracterização de si próprio, sente que algo lhe falta, e crê que a 'alienterapia' lhe restituirá o ser integral e mitigará a dor provocada pela presença desse vazio. 

Depois dessa resumida e complexa reflexão, você ainda acha que o fenômeno Óvni pode ser reduzido à ideia vulgar de naves e seres extraterrestres? Não tenho nenhum escrúpulo em afirmar que só mentalidades medievais se ancoram em um raciocínio tão raso, pobre, rançoso. Alteridade é apenas um dos requintados pratos de um fausto banquete proporcionado pelo estudo sério do fenômeno Óvni para pessoas de refinado saber, rejeitado pelos acometidos de inapetência ou abstinência cultural.


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Emmanuel Lévinas, O Humanismo do Outro Homem. Vozes, 1993.
Nicola Abbagnano, Dicionário de Filosofia. Martins Fontes, 2007.
Antonio Quinet. Os Outros em Lacan. Zahar, 2012.

Um comentário:

  1. Querido Carlos,
    Mais uma vez, tenho a dizer que seu texto é mesmo impecável, cada dia mais sofisticado e contumaz, explicitando com maestria suas ideias e suas emoções. Confesso, porém, que me encontro entre as mentalidades medievais citadas no artigo, figura quixotesca que sou, defendendo com humildade meu olhar sobre o mistério quando contemplo o céu que me arrebata com o espetáculo que meus olhos teimam em fitar dia após dia, noite pós noite, sem nunca decifrá-lo. O universo me intriga e me faz pensar em minha insignificância, me remetendo à frase que se atribui ao filósofo grego: “Só sei que nada sei...”. O fato é que somos muitos... Afinal, estamos em mutação, quando abertos a novas histórias, a novos conhecimentos, a novas descobertas. Reconheço o movimento constante dessa roda que é a vida, a história, a ciência, como o próprio cosmos, que supomos harmonia, mas se principia no caos... Triste pressupor que em tão vasto horizonte, nossa Terra seja a única a pensar...

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